Sem lenço, sem documento e sem dignidade
Eliane Mendonça
Desde a desocupação, as famílias que viviam no Pinheirinho estão só com a roupa do corpo, sem documentos, sem casa, sem móveis e sem nenhuma perspectiva. Se tudo isso não bastasse, ainda estão sendo tratadas como lixo, sendo mantidas em condições subhumanas em locais que a prefeitura insiste em chamar de abrigo.
Em uma visita ontem ao Caic Dom Pedro, a situação era deplorável. Sem procurar muito, é fácil ver vários doentes deitados no chão. Pessoas com pneumonia, vítimas de AVC que já não falam e não andam e até um caso de tuberculose.
Pra piorar a situação, estão todos amontoados na quadra de esportes, dividindo espaço com as crianças que brincam em meio a fezes de pombos e restos de comida, e ainda tendo de conviver com a falta de água, que durou o dia todo, nesta segunda-feira (23).
No rosto das pessoas o semblante pesado, de quem perdeu as esperanças e está sem nenhuma perspectiva. E ainda há relatos de assédio por parte da prefeitura, que insiste em seu plano xenofóbico de mandar as famílias para as cidades de origem.
“A ‘moça’ da prefeitura veio de novo aqui perguntar se a gente quer passagem de volta. Mas, voltar pra onde, meu Deus! Eu não tenho lugar pra ir não”, disse a diarista Sineide Souza de Jesus, que está no abrigo com o marido e cinco filhos.
Cada morador é “marcado” com uma pulserinha que, segundo os próprios abrigados, não pode ser tirada, de jeito nenhum.
“Disseram que se a gente quiser comer e ter um colchão, temos de ficar com a pulseira. É horrível. Não sou bicho pra andar de coleira”, reclamou Geralda da Silva Moreira, 54 anos.
Além disso, os abrigos continuam cercados pela polícia. A orientação é que ninguém saia. “Dizem que se sair, não volta mais. Mas vou viver enclausurada aqui? Não posso trabalhar nem levar as crianças para a escola? O que vai ser da gente?”, perguntou dona Geralda.
Histórias comovem
Ediléia Neves, 31 anos, grávida de cinco meses, é mãe solteira de quatro filhos de 12, 10, 8 e seis anos, respectivamente. Abrigada na Igreja Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, no Colonial, ela não tinha idéia do que ia fazer da vida. “O que eu vou fazer agora e como vou sustentar os meus filhos? É só nisso que eu penso. Nunca imaginei que passaria por uma situação dessas, em toda minha vida”, disse.
Outra história que choca é de Claudineide da Silva, de 44 anos, que é paciente terminal de câncer e também está abrigada na igreja.
Ela conta que sente muitas dores no corpo, já que tem câncer nos ossos, mas passou a noite inteira sentada na cadeira de rodas. “Eu tava com muito medo. Tinha bomba explodindo aqui na igreja, à noite. Fiquei com medo. Nem dormi”, disse.
Dona Ozonina Ferreira de Souza, 62 anos, se emocionava cada vez que falava da violência da desocupação. “Meus netos estão todos traumatizados. Fico me perguntando por que fizeram isso com a gente. Eu trabalhei minha vida inteira, to velha e cansada.
Depois de tanto tempo, eu não mereço uma casa? Eu acho que eu mereço... Eu não sou bandida. Sou trabalhadora e honesta. Só queria um teto pra criar meus netos tranqüila”, disse, chorando.
O companheiro de dona Ozonina, o aposentado Abelino Alves Moraes, 70 anos, disse que estava se sentindo desnorteado. “Vamos ver o que vão fazer com a gente, né? Não é possível que larguem a gente assim, na rua”, disse.
No Caic Dom Pedro, dona Sineide montou as camas debaixo da rede da quadra do Caic Dom Pedro, onde tinha um pombo morto. Mas assegura que fez isso porque era o único espaço que tinha. “Falam que pombo dá doença, né? Mas se o pombo estiver morto, será que ainda tem problema? Acho que não, né fia?”, perguntou à reportagem.
A grande preocupação dela é com os estudos das crianças. Não só dos seus filhos, mas das crianças que estudam no Caic Dom Pedro.
“Tem mãe aqui do bairro preocupada, querendo saber quando a gente vai sair porque o filho estuda aqui e as aulas começam no dia 6. Eu, como mãe, entendo a preocupação. Mas, vou responder o que?”, disse, já em lágrimas.
O filho mais velho de dona Sineide, Jealisson, completou 11 anos no dia da desocupação. O pai, o pedreiro Geraldo Gabriel da Nóbrega, 53 anos, conta que tinha comprado coisas pra comemoração. A idéia era fazer um bolo simples, com guaraná. “Era o que ele queria. Fiz um esforço e comprei, ele tava feliz. Mas a polícia tirou a gente da cama. Não deu tempo de fazer o bolo e o Guaraná que comprei também ficou pra trás. No meio da desgraça, era só o que as crianças se lembravam. Pra um pai isso é muito difícil”, disse, com a voz embargada.
Minutos depois, uma voluntária que sabia da história chegou com um bolo pequeno, de padaria, e um guaraná. E o pequeno Jealisson pode então, comemorar seus 11 anos como tinha sonhado, com direito até a cantar parabéns.
“Olha, se não fosse esse povo de bom coração que aparece aqui por conta própria, não sei o que seria da gente. Porque a prefeitura mesmo, não está nem aí. São gestos que podem parecer pequenos, mas aliviam o coração da gente e nos ajudam a suportar esse sofrimento”, disse dona Sineide.